Lisboa, 19 de Janeiro de 1915.
Meu querido Amigo:
Há tempos que lhe ando prometendo uma extensa carta. Não sei mesmo se, especificando, lhe não falei numa carta de género psicológico, a meu próprio respeito. Em todo o caso, é disso que se trata.
Eu ando há muito - desde que lhe prometi esta carta — com vontade de lhe falar intimamente e fraternalmente do meu «caso», da natureza da crise psíquica que há tempos venho atravessando. Apesar da minha reserva, eu sinto a necessidade de falar nisto a alguém, e não pode ser a outro senão a você — isto porque só você, de entre todos quantos eu conheço, possui de mim uma noção precisamente no nível da minha realidade espiritual. Dá-se esta sua capacidade para me compreender porque você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso; e, dos que de perto literariamente me cercam, você sabe bem que (por superiores que sejam como artistas) como almas, propriamente, não contam, não tendo nenhum deles a consciência (que em mim é quotidiana) da terrível importância, da Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência de um dever a cumprir para com nós-próprios e para com a humanidade.
Nesta explicação aparentemente preliminar vai já exposta uma grande parte do problema. Não sei como lho hei-de expor ordenadamente; de modo perfeitamente lúcido. Mas, como isto é uma carta, eu irei expondo conforme possa; e você ordenará, em seu espírito, depois, os dispersos e alterados elementos.
A minha crise é do género das grandes crises psíquicas, que são sempre crises de incompatibilidade, quando não com os outros, por certo com nós-próprios. A minha, agora, não é de incompatibilidade comigo próprio; a minha, gradualmente adquirida, auto disciplina, tem conseguido unificar dentro de mim quantos divergentes elementos do meu carácter eram susceptíveis de harmonização. Ainda tenho muito a empreender dentro do meu espírito; disto ainda muito de uma unificação como eu a quero. Mas, como disse, não é dessa banda que sopra o vento do meu desconsolo actual.
A crise de incompatibilidade com os outros — não, entenda-se desde já, uma incompatibilidade violenta, como a que resultasse de divergências declaradas, nítidas, de ambas as partes. Trata-se de outra coisa. A incompatibilidade é sentida por mim, dentro de mim, e é comigo que está o peso todo da minha divergência de aqueles que me cercam. O facto de eu estar agora vivendo só, por não ter aqui família próxima (minha tia, em cuja casa eu estava, está na Suíça, onde foi ficar com a filha, que casou há pouco com um rapaz estudante, pensionista do Estado) vem agravar este estado de espírito, por me deixar a nu com a minha alma, sem afeições e interesses familiares próximos a desviar de mim a minha atenção.
Temos pois que vivo há meses numa continua sensação de incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam - mesmo com as próximas, amigos, literários é claro, porque os outros não são indivíduos com quem eu tenha que poder ter intimidade espiritual e por isso — como, em matéria de relações sociais, me dou bem com toda a gente, dou-me bem com eles.
Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha sinceridade. E isso não me basta. De modo que, à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária, mera-arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante. Pouco a pouco, mas seguramente, no divino cumprimento íntimo de uma evolução cujos fins me são ocultos, tenho vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura daquelas qualidades que recebi. Ter uma acção sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da minha vida. E, assim, fazer arte parece-me cada vez mais importante coisa, mais terrível missão — dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística. E por isso o meu próprio conceito puramente estético da arte subiu e dificultou-se; exijo agora de mim muita mais perfeição e elaboração cuidada. Fazer arte rapidamente, ainda que bem, parece-me pouco. Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito.
Passou de mim a ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um plebeísmo artístico insuportável, de querer épater. Não me agarro já à ideia do lançamento do Interseccionismo com ardor ou entusiasmo algum. É um ponto que neste momento analiso e reanaliso a sós comigo. Mas, se decidir lançar essa quase-blague, será já, não a quase-blague que seria, mas outra coisa. Não publicarei o Manifesto «escandaloso». O outro — aquele dos gráficos — talvez. A blague só um momento, passageiramente, a um mórbido período transitório, de grosseria (felizmente incaracterístico), me pôde agradar ou atrair. Será talvez útil — penso — lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série de ideias que urge atirar para a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à nossa estagnação. Porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através do que eu consiga realizar. É uma consequência de encarar a sério a arte e a vida. Outra atitude não pode ter para com a sua própria noção-do-dever quem olha religiosamente para o espectáculo triste e misterioso do Mundo.
Tenho-lhe explicado tudo isto muito mal. Quase que me tenta a ideia de rasgar esta carta onde, até, pouca justiça fiz a mim próprio. Mas você deve compreender o que eu sinto, e, creio, regozijar comigo, através da sua amizade, por esta minha evolução ascendente dentro de mim.
Regresso a mim. Alguns anos andei viajando a colher maneiras-de-sentir. Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade. Oxalá me [não] desvie disto o meu perigoso feitio demasiado multilateral, adaptável a tudo, sempre alheio a si próprio e sem nexo dentro de si.
Mantenho, é claro, o meu propósito de lançar pseudonicamente a obra Caeiro-Reis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida, e que constitui uma corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas almas dos outros. O que eu chamo literatura insincera não é aquela análoga à do Alberto Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos (o seu homem, este último, o da poesia sobre a tarde e a noite). Isso é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele. Chamo insinceras às coisas feitas para fazer pasmar, e às coisas, também — repare nisto, que é importante — que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento uma noção da gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir. E por isso não são sérios os Paúis, nem seria o Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos. Em qualquer destas composições a minha atitude para com o público é a de um palhaço. Hoje sinto-me afastado de achar graça a esse género de atitude.
Que pouco lúcido e explícito tudo isto! Mas eu tenho que lhe escrever tudo rapidamente; é hoje o dia 19 e eu não quero deixar de conversar com o seu espírito sobre estas coisas. Como já disse, você é o único dos meus amigos que tem, a par daquela apreciação das minhas qualidades que lhe permitirá não julgar esta carta um documento de megalómano, a profunda religiosidade, e a convicção do doloroso enigma da Vida, para simpatizar comigo em tudo isto.
Escuso agora de lhe explicar o quanto esta atitude — que eu, aliás, não revelo, por várias razões, desde a de ser uma coisa íntima até à de ser incompreensível às sensibilidades dos que me cercam — me incompatibiliza surdamente com os que estão em meu redor. Não é uma incompatibilidade violenta, disse; mas é uma impaciência para com todos quantos fazem arte para vários fins inferiores, como quem brinca, ou como quem se diverte, ou como quem arranja uma sala com gosto — género de arte este que dá bem o que eu quero exprimir, porque não tem Além nem outro propósito que o, por assim dizer, decorativamente artístico. E daí a minha «crise» toda. Não é crise para eu me lamentar. É a de se encontrar só quem se adiantou de mais aos companheiros de viagem — desta viagem que os outros fazem para se distrair e acho tão grave, tão cheia de termos de pensar no seu fim, de reflectir no aqui diremos ao Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos... Viagem essa, meu querido Amigo, que é entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores... e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza...
Bem ou mal — mal, por certo — expus-lhe tudo. Sinto-me contente por lhe ter falado assim, e porque sei que o seu espírito acolhe com simpatia e amizade estas minhas tristezas de altura. Tudo isto, escuso dizer-lhe, é segredo... De resto, a quem o poderia você contar?...
Termino, a tempo felizmente. Mande-me quando puder, cuidadosamente copiados dos originais, os inéditos de Antero de que me fala. Pode ser que, tendo-os aqui, seja conveniente publicá-los nalguma parte. Haverá autorização para isso? É bom saber-se.
Mando-lhe alguns versos meus... Leia-os e guarde-os para si... A seu Pai, se quiser, pode lê-los, mas não espalhe porque são inéditos. Amo especialmente a última poesia, a da Ceifeira onde consegui dar a nota paúlica em linguagem simples. Amo-me por ter escrito
«Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso!...
e enfim, essa poesia toda.
Tenho escrito mais, mas mando o que está completo e é mais fácil copiar. É pena que vá tudo em letra de máquina, que torna a poesia pouco poética, mas assim é mais rápido e nítido.
Escreva-me sempre, meu caro Côrtes-Rodrigues. Dê cumprimentos meus a seu Pai e receba um grande e fraterno abraço do seu
Fernando Pessoa
P.S. - Vi há dias uma esplêndida composição — «um túmulo de Wagner — do Norberto Corrêa. Bela deveras. Você gostaria imenso de a conhecer.
F.P.
P.S. - Não tenho tempo para reler esta carta. Naturalmente faltam palavras aqui e acolá, dada a rapidez com que eu a escrevi. E a letra em altura nenhuma será muito legível. Você desculpe.
F.P.