Mas a sensibilidade do nosso Ricardo Reis é estrondosamente reumática.
Faz festas à Musa, olhando para outro lado, pensando sei lá em quê.
Não pesquisemos. E, aliás, nas festas de Ricardo Reis não há foguetes,
porque a ode alcaica foi sempre uma pessoa sossegada.
Nesta agitação interior da sensibilidade portuguesa, figuramos no
texto nós dois, Caeiro e eu; o Fernando Pessoa é uma nota à margem, e o
Ricardo Reis uma nota falsa.
Da filosofia íntima de Ricardo Reis conclui-se que ele não espera
nada da vida senão vinho e morte. É simples mas um pouco frio, pois não
aquecemos o vinho, como os romanos. Este contemplar calmo e quase
afectivo da esperança da mortalidade absoluta tem qualquer coisa de já
morto. Um ente vivo deve ao menos revoltar-se por ter que morrer, a não
ser que julgue que não morre. Mas o Ricardo Reis trata a mortalidade
como se fosse a imortalidade e tem uma fé simples e confiante em coisa
nenhuma. Os faquirs concentravam-se fitando um ponto qualquer sem
importância; mas não se poderiam concentrar se fitassem o espaço
despido. O Ricardo Reis consegue este faquirismo da sensibilidade: fita o
Nada, sorri, e pede vinho. De vez em quando vira-se para o outro lado e
pede que o coroem de rosas. Nos intervalos vira-se para o terceiro lado
e diz «Chloe». Esta Chloe, que às vezes descamba em Lydia, é pranteada
na ode do Livro 1 com um adjectivo no masculino.
Bem sei que em Caeiro há a mesma indiferença para com a morte.
Mas Caeiro encara a morte como uma criança que ouviu falar dela; Ricardo
Reis como um velho que a tem à porta. Nem um nem outro acredita na
imortalidade, mas Caeiro não acredita porque não pensa, e Ricardo Reis
não acredita porque não acredita em nada. Por isso a leitura de Caeiro,
com mortalidade e tudo, anima e estimula como o sol e o céu, que também
não acreditam na imortalidade, e pela mesma razão de Caeiro; e a leitura
de Ricardo Reis desanima e desconsola - a ponto de chegar a
estorvar, com um estrangulamento do nosso pobre coração, a verdadeira
alegria estética que nos causa. Aquilo é belo como um belo cemitério.
Admiramos e saímos logo. Quanto mais belo mais nos aflige. Por baixo,
por contraste com a própria beleza, sente-se, como uma presença carnal
às avessas, a realidade imaginável do Nada.
Álvaro de Campos
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