domingo, 24 de junho de 2012

Mas a sensibilidade do nosso Ricardo Reis é estrondosamente reumática.
















Mas a sensibilidade do nosso Ricardo Reis é estrondosamente reumática.
Faz festas à Musa, olhando para outro lado, pensando sei lá em quê. Não pesquisemos. E, aliás, nas festas de Ricardo Reis não há foguetes, porque a ode alcaica foi sempre uma pessoa sossegada.
Nesta agitação interior da sensibilidade portuguesa, figuramos no texto nós dois, Caeiro e eu; o Fernando Pessoa é uma nota à margem, e o Ricardo Reis uma nota falsa.
Da filosofia íntima de Ricardo Reis conclui-se que ele não espera nada da vida senão vinho e morte. É simples mas um pouco frio, pois não aquecemos o vinho, como os romanos. Este contemplar calmo e quase afectivo da esperança da mortalidade absoluta tem qualquer coisa de já morto. Um ente vivo deve ao menos revoltar-se por ter que morrer, a não ser que julgue que não morre. Mas o Ricardo Reis trata a mortalidade como se fosse a imortalidade e tem uma fé simples e confiante em coisa nenhuma. Os faquirs concentravam-se fitando um ponto qualquer sem importância; mas não se poderiam concentrar se fitassem o espaço despido. O Ricardo Reis consegue este faquirismo da sensibilidade: fita o Nada, sorri, e pede vinho. De vez em quando vira-se para o outro lado e pede que o coroem de rosas. Nos intervalos vira-se para o terceiro lado e diz «Chloe». Esta Chloe, que às vezes descamba em Lydia, é pranteada na ode do Livro 1 com um adjectivo no masculino.
Bem sei que em Caeiro há a mesma indiferença para com a morte. Mas Caeiro encara a morte como uma criança que ouviu falar dela; Ricardo Reis como um velho que a tem à porta. Nem um nem outro acredita na imortalidade, mas Caeiro não acredita porque não pensa, e Ricardo Reis não acredita porque não acredita em nada. Por isso a leitura de Caeiro, com mortalidade e tudo, anima e estimula como o sol e o céu, que também não acreditam na imortalidade, e pela mesma razão de Caeiro; e a leitura de Ricardo Reis desanima e desconsola - a ponto de chegar a estorvar, com um estrangulamento do nosso pobre coração, a verdadeira alegria estética que nos causa. Aquilo é belo como um belo cemitério. Admiramos e saímos logo. Quanto mais belo mais nos aflige. Por baixo, por contraste com a própria beleza, sente-se, como uma presença carnal às avessas, a realidade imaginável do Nada.

 Álvaro de Campos


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