quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Saber Que Escapa Aos Relógios


Era uma vez um país onde os cegos davam longos passeios à beira-mar.
Arregaçavam as calças mas não se importavam de molhar as meias [por detrás das sandálias.
Desta forma elaborada dissertavam sobre a cor das águas.
Um dizia: «Quantas cores supões caberem dentro duma só vaga?»
Outro respondia: «Todas aquelas que sinto nos pés as confirmas no coração».
«Donde te vem sabedoria assim tamanha?», retorquia o primeiro; ao que o segundo exclamava:
«Da ignorância subjacente à tua pergunta».
Eu, que olho tanto para o mar, começo a intuir a minha cegueira
E já sinto o desconforto dos pés frios, condição indispensável
Para quem espera sem compreender a demora.
Deveria já ter resvalado para aquele país.
Por exemplo, já não vejo as coisas mas o espaço que há entre elas;
E não vejo os órgãos mas o intervalo que há entre eles
Espaço de fase, diz-se na Física quântica.
Por exemplo, já não me importo com o tempo dos verbos nem com a colocação rigorosa dos ficheiros.
Quase sempre paro as tarefas a metade, interrogando-me sobre aquilo que sabia antes de nascer.
Nas muitas longas horas que dedico à contemplação do mar nascem as sombras do futuro
E no lugar do futuro eu vejo-me sentado com grande pena de mim.
Não sei onde vou buscar a coragem para vos revelar todos estes segredos;
Repararam, por certo, na minha forma de falar, em moldes que não são permitidos.
Dir-se-iam quase escandalosos e por isso eu peço perdão.
Vejam bem: ainda me falta aprender a falar silenciosamente.
A verdade é que ganho a vida como professor e, confesso sem vaidade, sou famoso como tal.
É tudo tão estranho: nas novas salas de aulas a Cruz foi substituída [pelo relógio.
Dantes ela estava à frente, em cima de mim; agora ele está nas costas dos alunos
Cínico, só eu o vejo, obriga-me ao descrédito geral, à vergonha.
Um destes dias não resisti; os cegos estavam parados no beijo das ondas. Gritei bem alto:
«Sou eu quem vos permite a felicidade. Mandem outro para o meu lugar!»
Fingiram não ouvir-me; mas de imediato eu fui rodeado pelo bater ensurdecedor das asas seráficas
Pelo que tenho a certeza absoluta que me escutaram.
Hei-de pagar o meu atrevimento, esperando tanto mais absurdamente quanto decidi deixar de ler as horas.

Mário Cabral

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