quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Serradura

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.
*
E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.
*
Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.
*
Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o "Matin" de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:
*
Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.
*
Folhetim da "Capital"
Pelo nosso Júlio Dantas ---
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...
*
O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...
*
Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta...
*
Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
--- Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:
*
O que era fácil --- partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel
*
A gritar "Viva a Alemanha"...
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade...
*
Vou deixá-la --- decidido ---
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.
  Mário de Sá-Carneiro 

1 comentário:

scorpia disse...

Só podia ser um texto deste senhor... Um pouco deprimido, deprimente e deprimissivo...mas tão adequado...

PS: quando deixares a alma no lavabo, diz a localização...deixo lá a minha e assim fazem companhia uma à outra...;)

Ai que ricos desalmados me sairam!!!!

Beijinhooos!