terça-feira, 7 de julho de 2009

O Milhundres

« Quiz o meu companheiro retroceder, mas eu convenci-o da desnecessidade de fugirem aos realistas dois pobres académicos que se presumiam politica e socialmente indefinidos neste mundo. Fomos avante. Exactissimamente : lá estava, na quebrada de um serro, densa mó de gente armada, com as armas embandeiradas de escarlate. A tiro de bala, mandaram-nos fazer alto - e nós paramos, fiados na lealdade dos parlamentários, que vieram a nós com as clavinas no braço. Eram dois, com o caudilho à frente. Milhundres era homem mal encarado. Cincoenta annos teria, e grisalhas as barbas. Vestia casaco de miliciano com insígnias de tenente, e dragonas de capitão mór. Trazia a banda a tiracolo, e uma longa espada de misericórdia enfiada num boldrié de coiro de anta. — Quem são, e d'onde vêm? disse elle. — Somos estudantes e vimos de Coimbra. — Quem vive? tornou elle. — O senhor D. Miguel! respondemos. — O senhor D. Miguel PRIMEIRO ! replicou o guerrilheiro, accentuando a palavra supplementar, como se a nossa profissão de fé, sem a addição, ficasse equivoca. — O senhor D. Miguel primeiro! repetimos, sacudindo os gorros. — Então, visto que são dos nossos, retrucou Milhundres, andem lá para a recta-guarda, que nós vamos entrar em Penafiel. Precisamos de quem escreva proclamações ao povo, e os senhores, se são estudantes hão-de fazer coisa que se veja. Consultei a minha bossa das proclamações, e disse: — Vamos lá! O meu companheiro estava enfiado, porque receava que o general guerrilheiro o nomeasse chefe de estado maior. Eu achava extrema graça a tudo aquillo. Entramos em Penafiel. Quando surgimos no cruzeiro que se ergue ao topo da primeira rua, os moradores da cidade começaram a fechar as portas. — Que ovação! disse eu ao meu condiscípulo. — Dir-se-ia que somos malta de salteadores que irrompemos das brenhas ! — Se pudéssemos fugir . . . murmurou o meu amigo. — Cala-te, que isso é serio! disse eu. Milhundres entoou os vivas aos quaes respondemos enthusiasticamente. Ao fim da rua engrossaram as nossas forças com três maltrapilhas armados de foices, e defronte da cadêa fizemos juncção com um alferes de milicias montado e alguns pedestres em tamancos. Repetiram-se os vivas. — Primeiro que tudo, disse o chefe, vamos à egreja dar graças a Deus. Era um Te-Deum económico, com profusão de fervor religioso. Abriu-se de par em par o templo. E os valentes prostraram- se, e resaram o bemdito com grande estridor de vozes. Evacuado o templo, disse eu a Milhundres; — É necessário proclamar?— É, vá vocemecê escrever um edital, e o seu companheiro outro, respondeu o caudilho. — Onde é o quartel general? perguntei. — Não sei por ora. Vocemecês onde se vão aquartelar ? — Na estalagem do Mulato - Pois então é lá. Eu vou nomear authoridades, e lá vou ter. Amanhã vem aqui fazer juncção comnosco o brigadeiro Bernardino. O Mac-Donell já está em campo, e o Cândido de Anêlhe é seu secretario. Diga lá isto vocemecê na proclamação. — Muito bem. Galopamos para o quartel general. — Vamos proclamar? disse eu ao meu companheiro. — Pois vae, que eu, em chegando ao cimo da rua, enterro as esporas nos ilhaes do macho, respondeu elle com as côres ainda quebradas. — Pois não achas isto bonito? Acaso estarás mais divertido na tua aldeia? Tiremos partido de tudo, emquanto não cheira a pólvora. Vamos collaborar numa proclamação em estylo biblico. — Pois fica, se achas graça a isto: eu de certo fujo. — Pois então também eu, que me parece estúpida a farça se me deixas em monologo. Era fácil e segura a fuga, mas honrosa não me pareceu muito. Eu ia envergonhado do meu procedimento, e compadecido do cabecilha. Pareceu-me desgraçado aquelle homem, e d'ahi vem o desvaneio da simpathia que lhe ganhei. Além de que, de mim confesso sem pejo que me não seria difícil escrever uma proclamação sentida; grammatical não direi. A minha familia era miguelista, e festejava, como em sinagoga recôndita, os dias solemnes da sua crença. Milhundres seria o bem-vindo e honorificado em casa de minha familia. la-me por isso a consciência recriminando de mau coração, de covarde animo, e de apóstata villão. Tudo isto me esqueceu quando cheguei a Amarante, e só me tornou à memória quando vi, em 1861, entrar Milhundres preso nas cadeias da Relação. »



Camilo Castelo Branco, in "Memorias do Cárcere"



O "Milhundres": João Nunes Borges de Carvalho, Tenente de Milícias, natural de Vila Cova de Vez de Aviz, Freguesia de Milhundos, Penafiel. Paladino trágico de uma causa perdida, liderou a guerrilha Miguelista durante a Patuleia, pelo que foi cognominado "O Capitão de Milhundos" pelas gentes da terra.

1 comentário:

Ana disse...

" - A sua guerra e a minha são diferentes - disse Silampa acendendo um cigarro.
- Eu sei, mas a minha pode ser ganha.
- Ganhar nem sempre é o que importa."

Santiago Gamboa, in "Perder é uma questão de método"