domingo, 24 de janeiro de 2010

O Fidalgo

O primeiro intrelocutor é um Fidalgo que chega com um Pajem, que lhe leva um rabo[1] mui comprido e űa cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha.

Diabo
À barca, à barca, houlá!
Que temos gentil maré!
- Ora venha o caro a ré[2]!

Companheiro
Feito, feito!

Dia.

Bem está!


Vai tu muitieramá[3],
atesa aquele palanco[4]
e despeja[5] aquele banco,
pera a gente que virá.

À barca, à barca, hu-u!
Asinha[6], que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
louvores a Berzebu!
- Ora, sus[7]! que fazes tu?
Despeja todo esse leito!

Comp.
Em boa hora! Feito, feito!

Dia.
Abaixa aramá esse cu[8]!
Faze aquela poja[9] lesta[10]
e alija aquela driça.

Comp.
Oh-oh, caça[11]! Oh-oh, iça, iça[12]!

Dia.
Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
- Ó poderoso dom Anrique,
cá vindes vós?... Que cousa é esta?...

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:
Esta barca onde vai ora,
que assi está apercebida[13]?

Dia.
Vai pera a ilha perdida,
e há-de partir logo ess'ora.

Fid.
Pera lá vai a senhora?

Dia.
Senhor, a vosso serviço.

Fid.
Parece-me isso cortiço...

Dia.
Porque a vedes lá de fora.

Fid.
Porém, a que terra passais?

Dia.
Pera o inferno, senhor.

Fid.
Terra é bem sem-sabor.

Dia.
Quê?... E também cá zombais?

Fid.
E passageiros achais
pera tal habitação?

Dia.
Vejo-vos eu em feição
pera ir ao nosso cais...

Fid.
Parece-te a ti assi!...

Dia.
Em que esperas ter guarida[14]?

Fid.
Que leixo na outra vida
quem reze sempre por mi.

Dia.
Quem reze sempre por ti?!...
Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...
E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer[15]
por que rezam lá por ti?!...

Embarca! Hou! Embarcai!
que haveis de ir à derradeira!
Mandai meter a cadeira,
que assi passou vosso pai.

Fid.
Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!

Dia.
Vai ou vem! Embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes,
assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes,
haveis de passar o rio.

Fid.
Não há aqui outro navio?

Dia.
Não, senhor, que este fretastes,
e primeiro que expirastes
me destes logo sinal.

Fid.
Que sinal foi esse tal?

Dia.
Do que vós vos contentastes.

Fid.
A estoutra barca me vou.

Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou!...
(Pardeus, aviado estou[16]!
Cant'a[17] isto é já pior...)
Que jericocins, salvanor[18]!
Cuidam cá que são eu grou?

Anjo
Que quereis?

Fid.

Que me digais,

pois parti tão sem aviso,
se a barca do Paraíso
é esta em que navegais.

Anj.
Esta é; que demandais?

Fid.
Que me leixeis embarcar.
Sou fidalgo de solar[19],
é bem que me recolhais.

Anj.
Não se embarca tirania
neste batel divinal.

Fid.
Não sei porque haveis por mal
que entre a minha senhoria...

Anj.
Pera vossa fantesia[20]
mui estreita é esta barca.

Fid.
Pera senhor de tal marca
nom há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!

Anj.
Não vindes vós de maneira
pera entrar neste navio.
Essoutro vai mais vazio:
a cadeira entrará
e o rabo caberá
e todo vosso senhorio.

Vós ireis lá mais espaçoso,
com fumosa[21] senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso.
E porque, de generoso[22],
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso.

Dia.
À barca, à barca, senhores!
Oh! que maré tão de prata!
Um ventozinho que mata
e valentes remadores!

Diz, cantando:
Vós me veniredes a la mano,
a la mano me veniredes[23].

Fid.
Ao Inferno, todavia!
Inferno há i pera mi?
Oh triste! Enquanto vivi
não cuidei que o i havia:
Tive que era fantesia!
Folgava[24] ser adorado,
confiei em meu estado[25]
e não vi que me perdia.

Venha essa prancha! Veremos
esta barca de tristura.

Dia.
Embarque vossa doçura,
que cá nos entenderemos...
Tomarês um par de remos,
veremos como remais,
e, chegando ao nosso cais,
todos bem vos serviremos.

Fid.
Esperar-me-ês vós aqui,
tornarei à outra vida
ver minha dama querida
que se quer matar por mi.

Dia.
Que se quer matar por ti?!...

Fid.
Isto bem certo o sei eu.

Dia.
Ó namorado sandeu,
o maior que nunca vi!...

Fid.
Como pod'rá isso ser,
que m'escrevia mil dias?

Dia.
Quantas mentiras que lias,
e tu... morto de prazer!...

Fid.
Pera que é escarnecer,
quem nom havia mais no bem[26]?

Dia.
Assi vivas tu, amém,
como te tinha querer!

Fid.
Isto quanto ao que eu conheço...

Dia.
Pois estando tu expirando,
se estava ela requebrando[27]
com outro de menos preço[28].

Fid.
Dá-me licença, te peço,
que vá ver minha mulher.

Dia.
E ela, por não te ver,
despenhar-se-á dum cabeço!

Quanto ela hoje rezou,
antre seus gritos e gritas,
foi dar graças infinitas
a quem a desassombrou.

Fid.
Cant'a[29] ela, bem chorou!

Dia.
Nom há i choro de alegria?..

Fid.
E as lástimas[30] que dezia?

Dia.
Sua mãe lhas ensinou...

Entrai, meu senhor, entrai:
Ei-la prancha! Ponde o pé...

Fid.
Entremos, pois que assi é.

Dia.
Ora, senhor, descansai,
passeai e suspirai.
Em tanto virá mais gente.

Fid.
Ó barca, como és ardente!
Maldito quem em ti vai!

Diz o Diabo ao Moço da cadeira:
Nom entras cá! Vai-te d'i!
A cadeira é cá sobeja;
cousa que esteve na igreja
nom se há-de embarcar aqui.
Cá lha darão de marfi,
marchetada[31] de dolores,
com tais modos de lavores[32],
que estará fora de si...

À barca, à barca, boa gente,
que queremos dar à vela!
Chegar ela! Chegar ela!
Muitos e de boamente[33]!
Oh! que barca tão valente!

Gil Vicente - Auto da Barca do Inferno

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